Essa parece ser a primeira grande prova da carreira de Eggers, visto que diferente de seus dois primeiros longas, em O Homem do Norte ele trabalhou pela primeira vez com um filme de grande orçamento, com menos momentos de introspecção de seus protagonistas, ao passo que conduziu muitas cenas de ação. O resultado pareceu um formulaico refinado, um indie épico competente, mas não tão marcante quanto os longas pregressos de Eggers.

História

Como citado acima, o estúdio deu bastante liberdade para a condução de Eggers, que, além da direção, também assinou o roteiro em parceria com o dramaturgo islandês Sigurjón Birgir Sigurðsson. A dupla cria uma narrativa sangrenta e fiel à cultura nórdica, obedecendo à estrutura narrativa de épicos de vingança: o jovem príncipe Amleth jura vingança após a morte do seu pai, o Rei Aurvandill, traído pelo tio, Fjölnir. Adulto, ele se junta a uma tribo de homens-lobo que destrói aldeias inteiras em busca de escravos e riquezas, até que reencontra o seu destino e parte atrás do tio com sede de sangue. Amleth, o protagonista do longa, é um guerreiro quase primitivo e a escolha de seu intérprete (Alexander Skarsgård) faz sentido quando lembramos que ele fez a última versão de Tarzan nos cinemas. Toda a força e falta de tato social presente no personagem mostra como sua vida foi movida por esse objetivo, de forma bem brutal. O filme parte do ponto em que Amleth, no auge de sua força após anos como mercenário, vai ao encontro do seu destino. Para isso, ele arma um plano com ajuda da inesperada amante e bruxa Olga (Anya Taylor-Joy).

Direção visceral

Curioso ver que o diretor de A Bruxa, um terror que buscou pelo subjetivo até o final da película, poucos anos depois conduziu um longa que é praticamente o inverso. Se faltaram sustos no seu filme de terror, em O Homem do Norte, não faltam decapitações, a visceralidade da violência chega ao ponto de tornar tudo aquilo muito normal, beirando o humor mórbido. Partindo desse ponto, vimos que Eggers queria se provar fazendo algo muito diferente, seja em abordagem, como tecnicamente falando mesmo. Basta ver as conduções de cena de ação, há muito travelling — com a câmera “viajando” sobre uma grua — nas batalhas campais, bem como muitos planos abertos, fazendo com que o público entenda o nível de grandeza nas vitórias dessas lutas. Outro destaque se dá pelo extenso trabalho de pesquisa de Eggers, que chamou uma equipe de acadêmicos liderados por Neil Price, professor do Departamento de Arqueologia e História Antiga da Uppsala University, na Suécia, considerado um dos maiores especialistas do mundo em estudos da cultura viking/escandinava e arqueologia xamânica. É um nível de capricho que a maioria esmagadora dos espectadores sequer vai notar, mas é isso que diferencia bons filmes de época de produções genéricas hollywoodianas. Apesar de ter lotado o filme de referências históricas, Eggers não teve total controle sobre as decisões criativas. Conforme o orçamento vai aumentando, mais o estúdio vai opinando – vide a opção pelo idioma do filme ser o inglês, mesmo que carregado de sotaque. Mas arrisco a dizer que diferente de filmes como Multiverso da Loucura, em que o seu realizador imprimiu as formas de linguagem dentro de uma estrutura narrativa imposta pelo estúdio, o corte final de O Homem do Norte parece ser o filme que Eggers realmente quis fazer.

Inspiração nos games

Uma inspiração inesperada, ao menos de acordo com minha experiência, é que a narrativa misturou o extenso trabalho de pesquisa histórica citado, acima com a execução de videogames, no melhor sentido da palavra. Skarsgård, literalmente se curva com o passar do tempo, como se carregasse nas costas o peso da vingança, lembra muito um certo personagem que matou até mesmo deuses em busca do seu objetivo; Além disso, Eggers deve ter jogado muito Assassin’s Creed Valhalla para a criação das cenas de ação. Mas dos jogos, eu sinceramente esperava ver mais inspiração de Hellblade: Senua’s Sacrifice.

Atuações

Se a representação de um brutamonte vingativo de Skarsgård lembra Kratos, os mesmos problemas do protagonista de God of War são espelhados em Amleth: ele parece vazio, não existe nada além da vingança na vida do personagem. Embora a proposta seja essa, na própria franquia de games da Sony (God of War, de 2018), vimos ser possível dar mais camadas para esse tipo de protagonista. E por contar com um protagonista tão desinteressante, Skarsgård acaba ofuscado pela excelente Anya Taylor-Joy — mesmo com pouco tempo de tela — e a grata surpresa que foi Claes Bang, premiado ator dinamarquês que interpretou Fjölnir. De forma menos marcante, mas bastante funcionais para a narrativa, valem as menções para o trabalho de Willem Dafoe, Nicole Kidman e Björk, que volta a atuar após sua traumática experiência com Lars Von Trier em Dançando no Escuro, de 2000.

Roteiro

Se há grandes méritos narrativos e estéticos, é no roteiro que O Homem do Norte encontra seu ponto fraco. Não pelos famosos furos ou diálogos ruins, mas sim por Eggers realizar uma releitura com estrutura tão formulaica, sem grandes surpresas ou desenvolvimento psicológico de seus personagens, sobretudo o protagonista. Acompanhamos o quão longe um príncipe viking consegue ir para fazer justiça pelo assassinato do seu pai, mas não sentimos. Outro problema do roteiro é a divisão de capítulos, que diferente de uma série, em que as pausas entre episódios são feitas de forma complementar narrativamente, aqui em muitos momentos, o corte abrupto atrapalha o ritmo do longa, dando a sensação, às vezes, dele ser mais lento do que realmente é. Mas Eggers, por outro lado, acerta a mão em utilizar o roteiro para a expansão do mundo, dando profundidade na cultura escandinava, mostrando que existem vida e diferentes tipos de sociedade, não apenas campos de batalhas, como alguns épicos fazem.

Direção de arte e fotografia

Como previamente citado, um extenso trabalho de pesquisa foi feito para a construção do longa, o que afetou diretamente o esmero técnico da direção de arte, que equilibra o clássico, que vão desde detalhes nas casas dos vilarejos, até o fantástico, como em uma cena de quase morte de um personagem. É um difícil equilíbrio entre o frio do realismo e o caloroso do fantástico. Há uma convenção — ou piada interna — de que o excesso de planos fechados em produções indies, na verdade, são por conta da falta de orçamento. Sendo verdade ou não, em O Homem do Norte Eggers parece ter dado o recado que estava fazendo um filme “grande” em seus diversos planos abertos, que dão mais facetas para a direção de fotografia, esta que caminha na tradicional paleta fria azulada, mas também momentos quentes, justamente nos — poucos — de calmaria. Essa brincadeira estética também casa com a banalidade da violência na direção. Sério, tem um momento que você nem vai se chocar mais.

Som

Se eu fiz um paralelo com os games, queria que O Homem do Norte se inspirasse mais em God of War no quesito som. Que falta faz um bom tema épico para as excelentes cenas de ação do longa. Fica claro que a proposta é mesmo trazer algo mais introspectivo e até mesmo realista. O pouco destaque da trilha incidental vai de encontro com o som direto, principalmente das cenas de ação. O visceral do visual é espelhado no som. É a proposta, mas reforço, todo épico marcante vem junto de uma trilha sonora igualmente marcante.

Conclusão

Lançado com certo atraso no Brasil, já sabemos que O Homem do Norte está fazendo sucesso nas bilheterias mundo afora. O que é um grande mérito se tratando de um épico, subgênero que acumula fracassos nos últimos anos. Mas, ao mesmo tempo, penso que parte desse sucesso pode se dar pela superficialidade da obra, que embora tenha lá suas mensagens; parece o tipo de filme ideal para grupos mal-intencionados, por exemplo, de supremacistas brancos, usarem para impor suas tortas convicções. Claro, nem de longe isso é culpa de Eggers e do filme, que em momento algum prega tais ideias, mas é o preço da superficialidade da mensagem da obra. Dito isso, vale muito a pena assistir O Homem do Norte nos cinemas, é o tipo de filme para ser assistido na maior tela possível. Além disso, Robert Eggers não é um dos diretores mais promissores da sua geração à toa e, mesmo que não volte a fazer filmes de orçamentos estratosféricos, é sempre legal ver as ideias de um diretor com tesão em seu projeto sendo levadas para o público de formas inovadoras e criativas. Que tal conhecer os outros dois filmes de Robert Eggers? Ambos estão no catálogo da Prime Vídeo, onde você pode conferir também Night Sky e outros lançamentos desse mês.

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